O natal e o reveião são épocas de grandes contradições. Igual ao ano todo. Em tempos de pandemia isso parece ainda maior, mais preemente, mais profundo. Não esqueço daquele livro de Beatriz Nascimento sobre as “possibilidades em tempos de destruição” quando penso que “combinamos de não morrer” como gravou em pedra Conceição Evaristo.
Por muito tempo, e nesse sentido me coloco em simpatia a todas as pessoas pretas que não podem ser felizes ou não conseguem, não entendia algumas “máximas” pretas como aquela que diz “que tem gente chorando de barriga cheia”. Talvez por ser uma dessas pessoas. Talvez e o mais importante, porque não tem como ser feliz sozinho.
Como é que a gente consegue ser grata
Como é que a gente consegue ser grata quando se tem algum “conforto” e isso pode ser muito num país que quer a gente morta e ao mesmo tempo… Olhar em volta de si e ver tanta fome?
Aproveito para falar sobre a constatação de que esse “conforto” é uma “dádiva” capitalista que seleciona quem come e dorme, quem tem casa e estuda, segundo seus próprios interesses. Ou seja, ainda que exista alguma “ascenção”, ela será condicionada à domesticação de corpos ao “sistema”, o que te possibilita não morrer de fome mas pode muito bem te matar de alma.
Falo aqui de um lugar muito próprio, de uma família que levou pelo menos 120 anos até onde eu saiba e conheça o nome de minhas ancestrais, para que hoje a gente tivesse casa e comida. O básico. E aqui, isso já nos coloca num patamar que precisa ser pensado, aquele que se chama de “classe média negra”, se é que isso existe, se é que as pessoas se veem assim.
Esse lugar me preocupa, pois é de uma insegurança extrema. Você tem o que comer, pode eventualmente pagar seu aluguel, receber a graça de comprar uma casa e um carro, postar bonitezas no insta mas a que preço? Sim, ainda estou falando da domesticação e higienização de nossos corpos. Em outras palavras, a ascenção econômica é importante. Vivemos numa sociedade capitalista que se paga em reais. É preciso dar de comer às crianças e fortalecer as belas redes de solidariedade que vimos crescer em tempos de pandemia nas comunidades pretas.
Corpo, alma e mente precisam “comer”
Meu ponto não é esse. Mas sim o seguinte – corpo, alma e mente precisam “comer”. Uma coisa não vai sem a outra. A grande questão é que não se cultiva a alma de barriga vazia e nada alimenta uma alma faminta que está em desespero e por isso se torna incapaz de pensar em todas as direções…
Talvez por isso é que uma mulher negra feliz seja um ato tão revolucionário.
Deveríamos estar mortas, mas não estamos.
Lembrando que essa felicidade não é a das posses, mas também. Cultuamos a prosperidade, mas ela é de caráter múltiplo. Não é sobre acumular posses e ser uma “afropaty”, termo que me preocupa muito. É sobre a prosperidade como um conceito ampliado. Que alimenta inclusive a nossa capacidade de nos indignar e lutar contra a violência, sem que isso alcance as nossas mais leves e profundas subjetividades.
Lutamos coletivamente pela revolução de nossa felicidade
É importante lembrar antes de tudo que lutamos coletivamente pela revolução de nossa felicidade. Há muita gente trabalhando por elas nos bailes, nos terreiros, nas escolas de samba, na cultura, na televisão e nas artes visuais. Tudo isso para que tenhamos vontade de escrever um texto, colocar um brinco, desejar aquele anel de doutora, comer melhor, pensar melhor, querer crescer humana, política, emocional, psiquica, espiritual, intelectual e tecnologicamente.
Quando penso nessa máxima de que uma mulher negra feliz é um ato revolucionário, acredito que é sobre isso. E talvez por isso muitas de nós não consigamos “entender” ou “sentir”. E aqui falo de como a branquitide vende a felicidade como algo parcial – ter coisas e ser extremamente “bensucedida” profissionalmente, sempre segundo padrões brancos. Quem sabe é sobre isso que canta Mano Brown quando diz que tanta gente morreu “sonhando alto assim”. Ou quase, como muitas de nós sabemos.
Mas e quanto à andar num chão de terra batida? Ouvir um pássaro cantar. Ver uma arara? Comer um pé de fruta do quintal? Comer uma acarajé dedicado à comunidade? Ter a possibilidad de retornar a si mesma e às estórias de antigamente? Saudar o mar… Voltar duas vezes para casa? Aprender a dança que sua mãe te ensinava quando criança? Querer continuar tradições? Ora, talvez seja sobre isso.
Por isso agradeço
É o que sinto nesse final de ano.
E por isso agradeço, e apesar dos pesares de viver num país genocida, me sinto motivada para o ano que vem.
Agradeço a quem me cuida e não dorme, compreeende que somos humaninhas e ainda assim nos acolhe.
Agradeço a quem trabalha sem cessar para que sejamos felizes.
Agradeço às matriarcas de minha ancestralidade de corpo, alma, intelecto e sobretudo espiritual, desde onde nomeamos e ainda mais àquelas cujos nomes foram perdidos.
Agradeço à juventude, essa meninada porreta que tanto nos ensina e aponta caminhos ancestrais.
Simplesmente agradeço.
E desejo que esse próximo ano, mesmo com tantas contradições, seja feliz, cresça e floresça em cada uma de nós. Precisamos de cada momento de alegria. Sejamos felizes. Feliz ano novo.