Imagine um mundo em que a única treta para treinar é a preguiça. A gente sabe que não é assim, mas tem dias que a gente cai na armadilha de achar que basta querer superar a si mesmo e sair por aí, numa guerra do eu sozinha contra o mundo.
Porém…
Não vivemos num cenário isolado em que as condições de temperatura e pressão são controladas. Apenas imagino quem conseguiu treinar nesses dias de greve, com as estradas tomadas. E se não bastasse a vida lá fora, como voltar a treinar após quase um semestre sem nem subir escadas?
E me perguntei lá do fundo do coração:
porque continuar?
Muitas vezes pensei que não era hora de voltar e muito menos falar disso. O triatlo é uma delícia mas também envolve questões profundas de gênero, raça e classe. É o tipo de coisa que anda de mãos dadas com o discurso meritocrata e força de vontade. Pode não ser nada bonito. E por mais que uma preta tente “simplesmente fazer o esporte que mais gosta”, terá de enfrentar as consequências disso.
Onde eu e você mulher preta nos encontramos no meio de tudo isso? A gente pode simplesmente ser triatletas como outros qualquer? A resposta é não. Questões afins ao feminismo negro se tornam muito presentes no esporte. Fico imaginando o tamanho do esforço de Tiago Vinhal, um preto que acaba de se qualificar para Kona. Na sua mãe, Dona Vilma, que está sorrindo no instagram do atleta.
Afinal, porque não existem negros triatletas?
Porque causa tanta estranheza um corpo negro em cima de uma magrela?
Porque é tão difícil ao menos sonhar em ser uma triatleta negra?
Porque uma atleta negra não vai mudar o mundo?
O que as crianças negras sentem quando uma mulher negra nada, pedala e corre?
Porque eu tenho de lutar em todos os espaços de treino contra o machismo, racismo e elitismo dos meus colegas homens e mulheres brancos?
Foram as perguntas que fiz. E depois, me questionei se poderia fazer triatlo e só.
Parece a batalha de uma mulher só. Mas não é.
Até que percebi que não havia nada de estúpido ou incoerente em querer sonhar. Porque até a paixão acontecer, au apenas queria sentir essa paixão. Como outra pessoa qualquer. Somente mais tarde “descobri” que não era bem assim e comecei a minha estória.
No final sou apenas mais uma pretinha sonhando, como existem tantas outras lá fora. E embora nossos sonhos sejam diferentes em sua natureza, eles andam de mãos dadas. Todas queremos em primeiro lugar, viver e depois encontrar a nossa humanidade em nós mesmas e nas demais. É por isso que carrego no coração e em cada treino cada uma de vocês que vem aqui ler esse blogue, cada uma que me puxa orelha e corrige, até mesmo quem não está interessada.
Isso faz valer a pena, faz surgir força de resiliência de onde não tem.
Ninguém briga tanto por algo que não valha a pena. Porque ser triatleta não é um sonho possível? Porque não posso cruzar a linha de chegada? Porque não posso percorrer metade da piscina sem pegar fôlego e me sentir o máximo? Porque não posso estar em cima de uma bicicleta de corrida? Porque?
Foi então que me dei conta (e entendi porque), estava indo na contramão:
Às mulheres negras foi imposto se preocupar e cuidar do outro, abrir mão de necessidades próprias. E, por desconhecer essa possibilidade de amor, afastamos e respondemos agressivamente. Porque a agressão é o que está mais presente em nosso cotidiano em um amplo espectro de violência.
(…)
O feminismo negro tem em uma de suas facetas essa subversão de imagens e construções históricas, que se apresentam na especificidade mais totalizante que podemos ansiar na luta que travamos pela justiça e pela igualdade. É a transformação em potência máxima da resistência e da libertação não só das mulheres negras.
Um dia por vez.
A temporada 2019 está aberta, que comecem os jogos. Árvore que enverga o vento não quebra.
A meta é cumprir um triatlo bebê (categoria sprint) de 750 metros de natação, 20K de bike e 5K de corrida. Quando? Daqui a um ano.
Os treinos vão incluir obviamente as três modalidades e algumas estripulias no meio do caminho para manter a mente irrequieta.
Bora?
Imagem: BGLH Marketplace