Câncer, uma estória de racismo institucional

Câncer… Antes de falar disso preciso começar dizendo olá queridas! Como estamos? Sei que andam por aqui, o que me deixa muito feliz. Comentem, visitem nossa página no face e deixem seus linques, assim posso conhecer um pouco mais de vocês.

Obrigada por visitar nossa casa enquanto eu estava fora. Tem muita coisa acontecendo, estou tentando voltar com a alimentação, a rotina de exercícios, o “hábito”. E justamente por isso, por conta desse movimento que acontece lá no profundo, queria voltar com um texto que ensaiei e muito. E ainda mais nesses dias tão conturbados. Ah, vamos…

Por muito tempo ela foi apenas minha mamãe. Somente alguns bons anos de feminismo negro e a própria idade me deram alguma dimensão de quem é essa mulher. Certamente ainda não tenho completa ciência de sua luta, da sua estatura. Apenas a certeza de queria certamente é uma das milhões de anônimas guerreiras brasileiras, mulheres pretas, de que fala a música.

Vou tentar contar parte de sua estória.

QUEM ME DERA

Outro dia ela me disse com uma ponta de melancolia que gostaria de ter sabido que era preciso fazer atividades físicas para envelhecer bem. O que não a impediu, mesmo sem a correta informação, de procurar se manter ativa até o momento. Antes de ser diagnosticada com o câncer, estava empenhada em correr e pra lá dos 60, conseguiu Não era algo que ela falava para todo mundo mas levava muito a sério. Foi uma surpresa para mim.

Como muitas anônimas guerreiras brasileiras um dos seus grandes medos sempre foi parar de andar, ter se depender de outras pessoas, dar trabalho aos filhos.

Hoje, por conta do “herpes zóster” ou cobreiro, esse desejo é mais que um desafio. No corpo dela, um seus maiores sintomas são dores excruciantes que a atacam sobretudo de noite. Ela grita de dor, algumas vezes segura o grito e tem espamos. Não toma remédios, não por teimosia, mas por medo de uma dos seus efeitos colaterais. Câncer de fígado. Melhor sentir dor e dormir para ver se passa.

CÂNCER & ZÓSTER

Assistir a essa cena nos causa muito sofrimento e revolta. Confesso que é revoltante saber que minha mãe sobreviveu a um câncer de mama e agora tem de lidar com o zóster. Porque isso tinha de atrapalhar tudo? O fato é que essa doença a submeteu a uma prova ainda maior, pondo em cheque inclusive sua própria resistência. Sua mobilidade foi muito afetada e para piorar, ela sente dores similares a fibromialgia, sempre de tarde e sobretudo no início da noite. É quando ela mais sofre.]

Ela desenvolveu o cobreiro como todo mundo, teve catapora na infância e o agente esperou que décadas se passassem para se desenvolver quando sua imunidade estava baixa, por causa da quimioterapia nesse caso específico. A única forma de se prevenir é na infância, tomando vacina. Infelizmente o preço é salgado, há quem fale em 500 reais. E todos que não fomos imunizados, estamos sob risco. Uma vez que a doença se manifesta, a única alternativa é o tratamento crônico.

O dia mais humano de minha mãe em todos esses anos convivendo com o câncer de mama e o zóster juntos foi quando ela me disse que não era forte, só desejava viver sem dor. Isso é algo que ainda me faz recuar, pensar. Minha mãe é como todas nós, forçada a ser forte todo tempo. Ela não enfrenta um tumor, mas sim dores espalhadas por todo corpo e infelizmente será assim para sempre.

Nós dizemos para que ela não fraqueje e ela, que é carne de pescoço, mantém a mente afiada. O bom humor e o amor. O tamanho disso, não sei.

NÃO EXISTEM EXEMPLOS NA MÍDIA

Ericka Hart fala com razão que não existem rostos e corpos na mídia que podem testemunhar o que é (sobre)viver (a) um câncer. Isso porque estamos aqui para testemunhar não apenas uma maior incidência dessas doenças em mulheres negras mas também o racismo institucional que friamente age para que isso aconteça.

Essa também é a estória de minha mãe é de todos os corpos que foram mortos pela doença em minha família. É a estória de todo corpo negro que está ou já teve um câncer. É que nós carregamos um gene que nos programa para desenvolver a doença e de fato muitos de nós tiveram de enfrentá-la. Bem aquela coisa da Angelina Jolie. Muitas famílias negras são assim. Porém jamais imaginei que aconteceria com minha mãe depois de eu mesma ter sido diagnosticada.

Eu havia ficado paranóica, pelo menos foi assim que me descreveram, após a morte de uma prima antes dos 30 anos. Sua morte me fez ficar muito atenta e cuidadosa, fazendo exames preventivos antes da época indicada. A minha doença fez com que minha mãe é minha tia passassem a fazer exames com uma maior preocupação. É isso que acontece, todos passam a se preocupar porque o famigerado “histórico” não é dos melhores.

Não se fala de mulheres pretas que passam por essas doenças, o câncer de mama no Brasil por muitos anos teve um ao rosto e ele era o de uma atriz branca, loira, jovem e rica. Se você procurar por pacientes negras com zóster, não vai encontrar. Porém há inúmeras, milhares e milhões de anônimas guerreiras brasileiras adoecendo, são mulheres negras, de meia idade ou velhas, pobres, morrendo sem rosto para se tornarem tristes estatísticas que não se convertem em políticas públicas para todas.

O CÂNCER E O RACISMO INSTITUCIONAL

Para a paciente oncológica, o racismo institucional significa o direito à vida. Ele se manifesta através da ausência de políticas públicas, do descaso nas campanhas de comunicação do estado, na prática de consultório. Por vezes, tudo isso junto, impedindo o acesso à profissional adequado, ao remédio, à dignidade.

Foi justamente o que negaram para minha mãe quando aquele médico decidiu que não havia urgência em seu exame. Apesar de ter sido exatamente esse mesmo documento que fez uma médica a enviar em regime de emergência para o hospital meses depois. Esse descaso quase lhe custou a vida porque fez com que ela tivesse tratamento com seis meses de atraso. Quase não deu para fazer nada. E com quantas?

Minha mãe nunca quis ser uma sobrevivente, quem quer? Ninguém deveria ser obrigada sob pena de ver sua vida ser tirada de você antes da hora, e muitas são, porque seu corpo é considerado dispensável. Porque você não tem a cor certa, o sobrenome certo, não tem a origem adequada. Minha mãe e muitas outras se tornam heroínas porque não tem escolha.

E aquelas que por ventura não estão aqui, não são menos guerreiras, que fique preta.

UM EXEMPLO DE ESPERANÇA

Decidi fazer esse texto inspirada no trabalho de Ericka Hart, em homenagem à minha mãe, como exemplo de mulher negra que nos inspira a lutar contra o câncer (e o zóster) Seu grande ensinamento é promover a prevenção acima de tudo, para evitar sempre que possível atravessar essa experiência como comunidade.

Lembro que durante a minha doença não tive contato com outras pacientes negras, naquela época ainda não era feminista negra e além de estar preocupada com não morrer, não tinha ferramentas para problematizar. Porém, mesmo sem entender muito bem, uma coisa me parecia temerosa – todo mundo da minha família que teve a doença morreu e não conhecia sobreviventes negras. Demorou muitos anos para perceber que sim, sobrevivi! E que poderia ter planos, pensar em ver minha filha adulta…

Para minha mãe no entanto, por ela inclusive ter trabalhado num hospital, tudo era ao mesmo tempo mais vívido e mais cruel. Ela sabia que era possível viver mas conhecia o que os médicos fazem para que isso aconteça. Ela já passara por experiências desumanas, com violência obstétrica, violência manicomial por exemplo, essa seria apenas uma delas. Sairia vitoriosa como sempre, porque é isso que heroínas fazem apesar de todo medo. Que só deixam escapar em ocasiões extraordinárias.

SEM CÂNCER, COM ZÓSTER

Hoje, o zóster tira sua paciência sim. Ataca sua mobilidade. Não é fácil viver com dor todos os dias. Se os deuses me pedissem tal provação, sei que não conseguiria, porque é inimaginável. Só sabe quem passa. Só posso tentar ao menos obedecer seus conselhos sobre envelhecer… Como ela me diz, é preciso fazer muita atividade física, comer bem, ser moderada, não fumar, não beber, dormir. Porque é isso que ela teria feito se soubesse, se tivesse tido acesso à informação. Então a gente faz o quê nessa hora?

Porque a gente sabe que tudo isso não é suficiente. E não foi para muitas. Então a gente escreve, lembrando que tem muita sorte de estar aqui e escrevendo sobre ela. Então a gente escreve e reza por nossos corpos e nossas ancestralidades. Nos resta cuidar do corpo quando possível, do sagrado quando necessário e umas das outras sempre que pudermos.

E se você quiser saber mais sobre câncer ou contar sua estória, acompanhe as discussões por aqui.

Imagem: New York Amsterdam News

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